Sobre amizade

Conversava esses dias com uma aluna querida sobre o fato de muitos alunos hoje não saberem o que é ter um amigo. Alguém que ouve você, te quer bem, torce por você, está junto nos bons e maus momentos, alguém com quem desabafar, com quem vc pode abrir seu coração e falar dos seus sentimentos, alguém que te questiona, te faz pensar, te desafia, mas te acolhe também sem que queira ter um envolvimento amoroso com você. Pode-se amar seus amigos sem querer ficar ou namorar com eles. Alguns têm amigos, porque moram perto, estudam na mesma sala, ou na mesma escola, fazem algum curso juntos, trabalham juntos, são vizinhos, fazem universidade juntos. Nesse caso quando não estudam mais juntos, ou quando mudam de trabalho, ou quando se mudam a amizade já começa a morrer ou a diminuir. Mudou de sala não são mais amigos. Como pode? Aquilo que parecia tão forte acabar de maneira tão banal? Seria apenas uma ilusão? Milhares de seguidores e poucos ou nenhum amigo? Como pode?

Hoje, muitos têm amigos virtuais, online, mas as distâncias são tão longas e a possibilidade de estar junto é tão mínima que às vezes desanima. É um amor online que ainda que distante faz bem. Que acolhe, que se preocupa, que ouve, que apoia (às vezes muito mais do que as pessoas fisicamente próximas). Às vezes não temos um amigo próximo, mas temos alguns amigos online super distantes fisicamente. Será que conseguiríamos manter fisicamente a amizade que mantemos online? Não sei. Afinal, na internet tudo é tão mais fácil e geralmente criamos um personagem de nós mesmos que só corresponde a um pedaço de quem somos.
Tudo que exige de alguma maneira está fadado ao fracasso nos dias atuais. Acabamos não querendo muito pensar nisso, mas é um fato. Como disse o jornalista Nicholas Carr em relação a nossa geração: os rasos. Nunca fomos tão superficiais.


Quando pus a música Quem Tem um Amigo do rappper Emicida para alguns alunos ano passado muitos estranharam. Um trechinho:
Quem tem um amigo tem tudo
Se o poço devorar, ele busca no fundo
É tão dez que junto todo stress é miúdo
É um ponto pra escorar quando foi absurdo
Quem tem um amigo tem tudo
Se a bala come, mano, ele se põe de escudo
Pronto pro que vier mesmo a qualquer segundo
É um ombro pra chorar depois do fim do mundo.



Se lê muitas vezes na internet assim: amizades sólidas resistem ao tempo, à distância, ninguém cobra nem exige nada de ninguém. São amigos e pronto. Podem se ver pouquíssimo que são amigos. Sempre amigos apesar de tudo.
Mas ser amigo não exige proximidade?! Estar junto? Participar, vivenciar, dividir, compartilhar? Se a bala come cadê ele pra se fazer de escudo?! Haha



Você tem amigos?! Ainda que não more perto? Ainda que não estude junto? Ainda que não trabalhe junto? Ainda que não seja alguém da sua família? Ainda que seja apenas online? Ainda que não seja da sua igreja?

Nesta modernidade líquida é possível ter amizades, amigos sólidos? Ou estamos numa época que clama por amor sem contudo conseguir entregar esse amor? Ou cultivar esse amor. É possível cativar alguém?

O Coração Tem Razões Que a Razão Desconhece

As personagens e suas características:
 PEDRO: adolescente astuto, intelectual, perspicaz. Nele, a razão predomina sobre a emoção. Possuía fortes “razões” para namorar Vera, uma vez que a emoção, por si só, não levaria a nada,
 JOÃO: jovem alegre, agradável, mas de cabeça vazia; andava sempre junto de Vera, dando a entender possível namoro.
 VERA: uma gatinha de 16 anos, sempre na moda e alegre.
Na hora do recreio, no pátio do colégio. Pedro aproxima-se de João e pergunta:
– Por que você está triste, João? Está doente?
– Não, cara, é que não tenho uma moto. Já pensou quantas garotas eu não conquistaria com uma 250 cilindradas?
– Nenhuma amigo, nenhuma do porte estático de Vera. Se você tivesse uma moto, só conquistaria “patricinhas” ou “peruas”, pois as pessoas atraem pelo que são e não pelo que têm – respondeu Pedro.
– Eu faria qualquer coisa para conseguir uma moto. Qualquer coisa!
Pedro sabia que João e Vera eram muito chegados e, por isso, perguntou:
– João, você namora Vera?
– Acho que ela é legal, mas não sei se isso poderia ser considerado namoro. Por quê?
Passado o mês de férias, julho, ambos retornaram ao colégio e continuaram a conversa:
– Já conseguiu a moto, João?
– Não, Pedro, não tenho dinheiro para compra-la.
– Pois eu tenho uma moto. Meu irmão mudou-se para os EUA e deixou-a pra mim. Como eu não gosto de moto…
– Mas que legal, cara! Quando posso busca-la?
– Hoje mesmo, se quiser. Mas, para ficar com ela, terá que me dar suas coleções de livros e revistas.
– Fechado, cara. Eu não leio mesmo…
– Mas há uma condição: não me impeça de tentar conquistar a Vera.
– Fechadíssimo, irmão!
Pedro, ajudado por João, marca um encontro com Vera na quadra de peteca do colégio. Fica decepcionado com a ignorância de Vera e decide ensinar-lhe lógica.
No encontro seguinte, Vera pergunta para Pedro:
– Sobre o que conversaremos?
– Lógica. Lógica é a ciência do pensamento. Para pensar corretamente, devemos antes considerar alguns erros comuns de raciocínio chamados sofismos ou falácias. Primeiro, vamos examinar o sofisma chamado generalização não-qualificada. Por exemplo: “Leite é bom para saúde. Por isso, todos devem tomar leite”.
– Eu concordo – disse ela, séria – Acho que leite é ótimo para todo mundo.
– Vera, esse argumento é um sofisma. Que ver? Se você tivesse alergia a leite, ele seria um veneno para sua saúde. E são muitas as pessoas que têm alergia a leite. Por isso, o correto seria dizer: “Leite geralmente é bom para saúde”. Entendeu?
– Não. Mas continue falando.
– O próximo sofisma é chamado generalização apressada. Preste atenção: “Você não sabe falar grego, eu não sei falar grego. João não sabe falar grego. Então, devo concluir que ninguém no colégio sabe falar grego”.
– É mesmo? – perguntou Vera, surpresa – Ninguém?
– Esse é outro sofisma. A generalização foi feita de maneira muito apressada. A conclusão se baseou em exemplos insuficientes.
– Ei, você conhece outros sofismas? É mais engraçado do que dançar!
– Bem, então escute o sofisma chamado ignorância de causa: “Alexandre viu um gato preto antes de escorregar. Logo, ele escorregou porque viu um gato preto”.
– Eu conheço um caso assim – disse ela – Bernadete viu um gato preto e logo depois o namorado dela teve um acidente de…
– Mas Vera, esse também é um sofisma. Gatos não dão azar. Alexandre não escorregou simplesmente porque viu um gato preto. Se você culpar o gato, será acusada de ignorância de causa.
– Nunca mais farei isto, prometo. Você ficou zangado?
– Não, não fiquei.
– Então fale mais sobre os sofismas.
– Certo. Vamos tentar as premissas contraditórias.
– Sim, vamos.
– “Se Deus é capaz de fazer qualquer coisa, pode criar uma pedra tão pesada que Ele próprio não consiga carregar?”
– Claro! – ela respondeu prontamente.
– Mas, se Ele pode fazer qualquer coisa, também pode levantar a pedra…
– É mesmo! Bem, então acho que Ele não pode fazer a pedra.
– Mas Ele pode fazer tudo!
– Ela balançou a cabeça:
– Eu estou toda confusa!
– Claro que está. Sabe, quando uma das premissas de um argumento contradiz a outra, não pode haver argumento.
Pedro consultou o relógio e disse que era melhor para por ali. Recomeçariam no dia seguinte.
– Hoje nosso primeiro sofisma é chamado de por misericórdia. Ouça: “Um homem se candidatou a um emprego. Quando o patrão perguntou sobre as suas qualificações, ele respondeu que tinha filhos, que a mulher era aleijada, as crianças não tinham o que comer, nenhuma roupa para vestir, nenhuma cama, nenhum cobertor e o inverno estava chegando”.
– Uma lágrima rolou pelo rosto de Vera.
– Oh, isso é horrível!
– Sim, é horrível – concordou Pedro – mas não é argumento. O homem apelou para a misericórdia e a piedade do patrão. Usou o sofisma por misericórdia. Entendeu?
– Você tem um lenço? Choramingou ela.
– Agora vamos discutir falsa analogia. Por exemplo: “Deveria ser permitido aos estudantes consultar livros durante as provas. Afinal de contas, cirurgiões têm raio X para guia-los durante as operações; engenheiros usam plantas quando vão construir prédios.”
– Puxa, essa é a idéia mais genial que ouvi nos últimos anos!
– Vera, o argumento está errado. Médicos e engenheiros não estão fazendo provas para saber quanto aprenderam, mas os estudantes estão. As situações são completamente diferentes, e por isso o argumento não tem valor.
– Eu ainda acho que é uma boa idéia.
– Quer conhecer um sofisma hipótese contrária ao fato?
– Isso soa delicioso!
– Escute: “Se madame Curie não tivesse deixado uma chapa fotográfica numa gaveta com um pedaço de uramita, o mundo hoje não conheceria nada sobre o rádio.”
– Claro! Você viu o que a televisão disse sobre isso? Foi incrível!
Pedro, já sem esperança de Vera pudesse pensar logicamente, resolveu dar-lhe a última chance:
– O próximo sofisma chama-se envenenando o poço – disse, com ar de frustrado.
– Que engraçadinho!
– “Dois homens estão prestes a iniciar um debate. O primeiro levanta-se e diz: «meu adversário é um grande mentiroso. Não se pode acreditar no que ele diz»…” agora pense, pelo amor de Deus. Pense firmemente. O que está errado?
– Não é justo. Quem vai acreditar no segundo homem se o primeiro o chama de mentiroso antes mesmo que ele comece a falar?
– Certo – gritou Pedro,vibrando de alegria. – 100% certo! Não é justo. O primeiro homem “envenenou o poço” antes que alguém pudesse beber a água! Vera, estou orgulhoso de você!
– Oh, obrigada!
– Agora, vejamos o petição de princípio. Por exemplo: “Cigarro prejudica a saúde porque faz mal ao organismo”.
– É claro que a afirmativa é infantil. É como se dissesse: “prejudica porque prejudica”. Não explica nada.
– Vera, você é um gênio. Esse sofisma toma como verdade demonstrada justamente aquilo que está em discussão. Veja, minha querida, as coisas não são tão difíceis. Tudo o que deve fazer é se concentrar, pensar, examinar, avaliar. Bem vamos rever tudo o que aprendemos.
– Está bem.
Cinco dias depois, Vera sabia tudo sobre lógica. Pedro estava orgulhoso, pois ele, e só ele, ensinara-a a pensar corretamente. Agora sim, ela era digna de seu amor.
Assim, ele decidiu revelar seus sentimentos.
– Vera, hoje não vamos mais conversar sobre sofismas.
– Oh, que pena!
– Minha querida, nós já passamos cinco dias juntos. Está claro que estamos bem entrosados.
– “Generalização apressada” – ela disse.
– Oh, desculpe!
– Generalização apressada – repetiu ela. – como você pode dizer que estamos bem entrosados baseado em apenas cinco encontros?
– Minha querida – falou Pedro, acariciando-lhe as mãos. – cinco encontros são suficientes. Afinal de contas, você não precisa comer todo o bolo para saber se ele é bom.
– “Falsa analogia” – disparou ela. – Não sou bolo, sou uma moça.
Aí, Pedro resolveu mudar de tática.
– Vera, eu te amo. Você é o mundo para mim. Por favor, meu amor, diga que vai me namorar firme. Porque, do contrário, minha vida não terá sentido. Eu definharei. Vou me recusar a comer.
– “Por misericórdia” – ela acusou.
– Bem, Vera – disse Pedro, forçando um sorriso –, você aprendeu mesmo os sofismas.
– É, aprendi.
– E quem os ensinou?
– Você.
– Está certo. Então, você me deve alguma coisa, não deve? Se eu não a procurasse, você nunca teria aprendido nada sobre sofismas.
– “Hipótese contraria ao fato”.
– Vera, você não deve tomar tudo ao pé da letra! Sabe que as coisas que aprendeu na escola não têm nada a ver com a vida.
– “Generalização não-qualificada”.
– Pedro perdeu a paciência.
– Escute, você vai ou não vai ser minha namorada?
– Não vou.
– Por que não?
– Porque esta manhã prometi a João que seria a namorada dele.
– Aquele rato – gritou Pedro, chutando as flores do jardim. – Você não pode namorar esse cara, Vera. É um mentiroso. Um chato. Um rato!
– “Envenenando o poço” – disse Vera. – e pare de gritar. Acho que gritar também é um sofisma.
– Com um tremendo esforço, Pedro baixou a voz, controlou-se e disse:
– Está bem. Vamos analisar esse caso logicamente. Como você poderia escolher o João? Olhe pra mim: um aluno brilhante, um tremendo intelectual, bonito, um cara com o futuro garantido. Olhe para o João: um cara-de-pau, vazio, um vagabundo. Pode me dar uma razão lógica para ficar com ele’
– Claro que posso. Ele tem uma moto – respondeu Vera, correndo para montar na garupa da motocicleta de João.
Pedro, com profunda tristeza, gritou com raiva para que Vera pudesse ouvir:
– O amor é um sofisma porque amar é sofismar!
– “Petição de principio” – berrou Vera, agarrada à cintura de João, na moto que arrancava velozmente.

Texto adaptado do original de Max Shulman. “O amor é uma falácia”, in As calcinhas cor de rosa do capitão e outros contos humorísticos, p. 62-90

Guia das falácias
Stephen Downes
http://criticanarede.com/falacias.html

Como evitar falácias?
http://www.pucrs.br/gpt/falacias.php

Livros sobre o assunto:

Lógica Informal
por Douglas N. Walton
Pensamento Crítico. O Poder da Lógica e da Argumentação
por Walter A. Carnielli e Richard L. Epstein
Como Vencer Um Debate Sem Precisar Ter Razão
por Arthur Schopenhauer
calvin_abec15 (1)

A filosofia não é concreta

“Não gosto de filosofia, porque ela não é concreta”, disse um ser para mim esses dias. Pensei comigo mconcretoesmo: Se você gosta tanto assim de concreto, então vá ser pedreiro, ora!
Quanta coisa não é concreto nem por isso deixamos de gostar. Ou não?!
Afinal, dizer que o concreto é o critério para o real, que só o que é concreto que importa é uma posição concreta, ou extremamente abstrata?
Será que o próprio concreto é concreto? A concreteza do concreto provém de onde, afinal? O concreto também não é um conceito?
Quer coisa mais não-concreta que a linguagem?! Se estamos no domínio da linguagem não estamos mais no domínio do concreto. Afinal, o que é concreto? Precisaríamos definir com clareza. Esta definição seria ela concreta? 
E por que o mundo tem que ser definido entre os do concreto e os do não-concreto? Essa divisão do mundo em dois e não em três, quatro, cinco, seis, é concreta também, ou aí já estamos viajando?
Quanta filosofia se encontra por baixo de um simples comentário, não é mesmo? Quantos pressupostos não-refletidos por baixo de uma crença tão concreta! Quantas coisas não-concretas apoiam a concreteza das coisas! Impressionante!
Quanta ingenuidade e ignorância se escondem por trás de certos comentários. 

Livro: Opinião, Conhecimento e Verdade; de Oscar Brenifer

Proposta

Nossa Escolha: A Prática FilosóficaImagem

                 Este guia de iniciação ao filosofar dirige-se mais especificamente aos alunos do Ensino Médio. Sua intenção é ser, antes de tudo, uma prática filosófica, ou seja, um exercício de questionamento, uma construção visível do pensamento. Partimos do princípio de que filosofar é um ato extremamente natural, ainda que numerosos obstáculos dificultem esse processo – hábitos já bastante consolidados, que induzem a uma certa complacência e nos fazem tomar por adquiridas ou certas algumas opiniões colhidas aqui e ali: na televisão, em casa, quiçá em um curso. Pensamentos tão prontos, que você não pensaria em questionar, a não ser por breves instantes.

                Propomos, então, um diálogo, uma troca de ideias entre Vítor e sua amiga filósofa, diálogo concebido como o do aluno consigo mesmo. É a ferramenta com a qual você, junto com Vítor, poderá começar a filosofar. Vítor deve aprender a se questionar para pensar por si mesmo; deve introduzir em suas práticas o hábito de por as ideias à prova, aprender a formular questões, tirar proveito de suas intuições, mas também de seus erros. Suas tentativas e erros o levarão a compreender o que significa o desenvolvimento filosófico.

                Comentários inseridos nos diálogos explicitam os problemas típicos da aprendizagem do pensamento filosófico e valorizam as diversas soluções que aparecem. Citações de autores sustentam ou contradizem as propostas enunciadas. Algumas grandes questões acerca do tema a ser tratado – as problemáticas -, enumeradas na margem ao longo do diálogo, ajudarão você a trabalhar as ideias. Uma seleção de textos clássicos, cada um deles seguido de três questões de compreensão, permitirá que você ajuste e aprofunde a reflexão.

                Nosso objetivo é que o aprendiz comece a elaborar um pensamento filosófico, confrontando-se consigo mesmo e com os outros.

Parte 1

Diálogos

Vítor: aluno do último ano do Ensino MédioImagem

Heloísa: uma amiga filósofa

Discussão sobre a opinião, o conhecimento e a verdade.

Difícil Verdade

VÍTOR – Existe uma coisa na filosofia que eu não entendo.

HELOÍSA – O quê?

VÍTOR – Cada um pode pensar e falar o que quiser, da maneira que quiser. Cada um tem uma opinião.

→Citações 1 E 2

A relação entre “filosofia” e “cada um tem suas opiniões” não está explícita. Não se entende o que há de incompreensível na filosofia.

HELOÍSA – É isso?

VÍTOR – É.

HELOÍSA – Eu estou achando você um pouco mal humorado hoje.

VÍTOR – Eu também. Eu digo qualquer coisa, e você imediatamente quer me fazer dizer o que eu não disse.

A dificuldade de assumir e explicar suas próprias ideias acaba inibindo as indagações e impedindo a reflexão.

HELOÍSA – E o que eu quis fazer você dizer?

VÍTOR – O pior é que eu não sei.

HELOÍSA – Então, como você pode me acusar assim?

VÍTOR – Eu te conheço o suficiente para desconfiar de você.

HELOÍSA – Eu achei que fôssemos amigos.

VÍTOR – Pode ser, mas, às vezes, assim que a gente começa a discutir, você fica meio esquisita.

HELOÍSA – você me acha esquisita?

VÍTOR – Não. Não esquisita, mas irritante. Como agora, por exemplo.

HELOÍSA – O que eu fiz?

VÍTOR – Você não para de me fazer perguntas! Como se você fosse da polícia.

HELOÍSA – Você não gosta de perguntas?

VÍTOR – Depende da pergunta.

Se Algumas questões são preferíveis a outras, é necessário estabelecer um modo de discriminá-las.

HELOÍSA – Você poderia ser mais preciso?

VÍTOR – Olha aí, justamente esse tipo de questão: “você pode ser mais preciso?”.

HELOÍSA – O que tem de errado nesse tipo de questão?

VÍTOR – Você finge que não entende, e ainda quer que eu me explique.

HELOÍSA – Mas, esqueça um pouco a sua irritação e me diga: para que pode servir “explicar” ?

VÍTOR – Ah, isso eu posso responder! Explicamos para saber melhor o que dizemos e o que queremos dizer, para sabermos o que temos em mente. Precisamos ter consciência das palavras que utilizamos, senão o que dizemos não tem o menor sentido. →Citações 3 E 4.

O termo “explicar” ficou mais claro. Ele significa tornar consciente a intenção e o conteúdo de uma ideia.

A expressão “estar consciente” permite distinguir uma simples palavra de uma palavra consciente de seu próprio conteúdo.

HELOÍSA – Você acha que isso pode ser útil?

VÍTOR – Nem sempre temos vontade de saber sobre as coisas.

A pergunta é sobre a “utilidade”, a resposta é sobre a “vontade”. Esses dois conceitos podem ter relação um com o outro, mas não podemos substituir um pelo outro sem nenhuma justificativa.

HELOÍSA – Você se lembra da minha questão?

VÍTOR – Lá vem você de novo?

HELOÍSA – Lembra-se?

VÍTOR – Não, mas não acho que isso faça diferença. No fim das contas, cada um diz o que quer.

O questionamento e as exigências de rigor são rejeitadas em favor de uma espontaneidade que deixa pouco espaço para aprofundar e refletir.

HELOÍSA – Você acha mesmo que podemos dialogar se cada um diz somente o que quer, o que passa pela cabeça, sem responder ao outro?

VÍTOR – Tem muita gente que discute assim.

Inovar uma quantidade de pessoas, mesmo que seja grande, não é suficiente para justificar o que quer que seja.

HELOÍSA – Essa resposta é suficiente? Você acha que…

VÍTOR – Tá bom, tá bom. Além do quê, eu agora me lembrei da questão. Você me perguntou se seria útil explicar o que dizemos e o que desejamos exprimir.

HELOÍSA – E o que você acha? Arriscaria alguma resposta?

VÍTOR – Sim: de certo modo, explicar pode nos ajudar a viver. Permite que nos compreendamos melhor. O conhecimento, a cultura, tudo isso favorece a vida em sociedade. Era isso o que você queria ouvir? →Citações 8 e 9

Depois de ter mostrado a importância da “explicação”, um contra-argumento aponta para os limites dessa importância.

HELOÍSA – E o que mais?

VÍTOR – Acabei de dizer. As suas questões, por exemplo, me deixam um pouco incomodado.

O exemplo das “questões que causam incômodos” não é suficiente. Um exemplo deve sempre ser analisado. Além disso, a relação entre o exemplo e a ideia de que há algumas verdades que não devem ser ditas não é evidente.

HELOÍSA – Será que é porque faço afirmações quando pergunto?

VÍTOR – Pode ser, mas você também quer me obrigar a dizer as coisas.

HELOÍSA – Mas, pelo que sei, você adora falar.

VÍTOR – Pode ser…

HELOÍSA – Você também acha que nem toda verdade deve ser ouvida?

VÍTOR – Há circunstâncias em que não queremos ouvir o que poderíamos ouvir.

HELOÍSA – Você pode me dar um exemplo?

VÍTOR – Quando estamos doentes, por exemplo.

HELOÍSA – Como assim?

VÍTOR – Quando estamos doentes, ficamos frágeis por causa do sofrimento. Ficamos mais irritados e suscetíveis. Não queremos ouvir coisas que nos desagradam, mesmo que sejam verdades. Não estamos num estado bom para compreendê-las. É por isso que temos que poupar os doentes. Pode ser até necessário mentir para eles. → Citações 9 e 10

O exemplo da doença, por meio das ideias de “fragilidade” e “sofrimento”, nos mostra por que em algumas circunstâncias não gostaríamos de ouvir certas verdades e justifica, portanto, a mentira.

HELOÍSA – Você se considera um doente?

VÍTOR – É claro que não. Esse só foi um exemplo.

HELOÍSA – Sim, mas um exemplo de quê?

VÍTOR – De que nem toda verdade deve ser dita.

HELOÍSA –Para você também não?

VÍTOR – Nem para mim e nem para os outros. A não ser, talvez, para você, que se acha acima de todo mundo…

HELOÍSA – Mas em que sentido esse exemplo se aplica a você?

VÍTOR – Agora que você me fez pensar nisso, talvez todos nós sejamos doentes.

HELOÍSA – Como assim?

VÍTOR – Todos nós sofremos, uns mais, outros menos, como consequência de nossas vivências. Se refletirmos um pouco, perceberemos que todos nós somos frágeis. A única diferença é em relação ao grau do sofrimento e da fragilidade. É por isso que existem palavras que não gostamos de ouvir ou até que não podemos suportar. Mesmo que elas sejam verdadeiras! Preferimos não ouvir o que os outros nos dizem. Acreditamos no que nos convém, mentimos a nós mesmos. Isso diminui nossas dores, mas, evidentemente, limita muito o que podemos conhecer. → Citações 11 E 12

A fragilidade e o sofrimento, estendidos a todos, nos mostra, finalmente, de maneira mais ampla, por que nem toda verdade deve ser dita, com consequências sobre o conhecimento: conhecemos somente o que suportamos conhecer.

HELOÍSA – Eu já disse alguma coisa que desagradou você?

VÍTOR – Não, mas você me irrita com as suas perguntas, o que é bem diferente.

HELOÍSA – Então não tem nada a ver com a sua ideia de doença, sofrimento e fragilidade?

VÍTOR – Não.

HELOÍSA – Eu já disse a você alguma coisa?

VÍTOR – Pior que isso. Você espera que eu mesmo o diga.

HELOÍSA – Será que o problema está no “dizer” ?

VÍTOR – Não, o problema já está no ato de pensar.

HELOÍSA – Então, seria melhor, por vezes, não pensar?

VÍTOR – No fundo eu acho que sim. Alguns pensamentos nos fazem muito mal. Sem dúvida porque eles vão de encontro com nossas opiniões e crenças, ou mesmo porque eles nos fazem duvidar de nós mesmos. É! É por isso que eu nem sempre aprecio as perguntas: elas semeiam a dúvida no meu espírito, e eu não sei mais onde estou. Fico com a impressão de que não estou entendendo mais nada. →Citações 13 E 14

O conceito de “dúvida”, com o poder de desestabilizar, nos ajuda a compreender por que certas perguntas nos deixam tão confusos.

HELOÍSA – Essa constatação incomoda você?

VÍTOR – Engraçadinha… Você sabe que sim.

HELOÍSA – O que desagrada você?

VÍTOR – Parece que eu não gosto de me questionar. Mas isso não é verdade.

HELOÍSA – Olha só!

VÍTOR – Eu só não gosto das perguntas que me fazem sofrer, aquelas que são difíceis de responder.

HELOÍSA – Elas levam menos à verdade do que as questões mais fáceis?

VÍTOR – Vou responder uma coisa que é difícil para mim, mas que sou obrigado a reconhecer. As perguntas que mais nos incomodam são, sem dúvida, as mais verdadeiras.

HELOÍSA – Por quê?

VÍTOR – Porque elas nos tocam mais profundamente, é por isso que nos machucam.

HELOÍSA – A que conclusão, então, você chegou?

VÍTOR – Que as palavras só são palavras, e que as ideias só são ideias. Se a verdade nos afeta tanto é porque faz parte de nós. Ela pode nos ajudar a entender muitas coisas e nos ajudar a viver, mas pode também nos magoar e nos destruir. Ela é nossa amiga e nossa inimiga. Às vezes, ficamos bem sem a verdade, apesar de, no fundo, precisarmos dela. →Citações 15 E 16

O estatuto ambivalente da verdade foi articulado: por vezes “amiga”, outras vezes “inimiga”, ela nos “ajuda”, mas também nos “destrói”.

HELOÍSA – Você acha que temos acesso à verdade?

VÍTOR – Talvez não, e felizmente! Seria pavoroso. Temos acesso a pequenas verdades, mas nunca à grande verdade, aquela com um V maiúsculo. Podemos mesmo é nos colocar todo tipo de pergunta. Talvez essa seja a verdade: fazer perguntas. Mesmo quando pensamos já saber, ou quando não queremos saber.

Os ecos dos filósofos

→ O NÚMERO DAS CITAÇÕES REMETE AO DIÁLOGO

1 – “A todo argumento podemos opor um outro.” Pirro, in Diógenes Laércio: Vida e obra dos filósofos ilustres, século III d.C.

2 – “Sócrates – Ninguém acharia que o outro tem mais razão, se achasse que a sua própria opinião fosse a verdade.” Platão, Crátilo, século IV a.C.

3 – “A unidade da consciência é o que constitui a relação das representações com um objeto, isto é, seu valor objetivo; é ele que produz conhecimento […].” Kant, Crítica da razão pura, 1781.

4 – “Nossa sabedoria consiste, em grande parte, em crer que sabemos e em crer que os outros sabem.” Valéry, O homem e a concha, 1937.

5 – “[…] A linguagem é a consciência real, prática […] e, como a consciência, a linguagem aparece com a necessidade de comércio outros homens.” Marx e Engels, Ideologia alemã, 1846.

6 – “A inteligência, o discernimento, o julgamento e todos os talentos do espírito […] são, sem dúvida, muito bons e desejáveis; mas esses dons naturais também podem ser extremamente ruins e perigosos […].” Kant, Fundamentos da metafísica dos costumes, 1785.

7 – “Não se deve dizer a verdade sobre tudo, ‘toda a verdade’, não importa quando, como um selvagem.” Jankelévitch, A ironia ou a boa consciência, 1936.

8 – “Sócrates – Se cabe a alguém mentir, é aos chefes das cidades, a fim de, visando o interesse da cidade, enganar os inimigos ou os cidadãos; a todas as outras pessoas a mentira é proibida […].” Platão, A República, livro IV, século IV a.C.

9 – “Nenhum homem tem direito à verdade que prejudica o outro.” Constant, A França do ano de 1797, 1797.

10 – “Aquele que mente, por mais bem intencionado que seja, deve responder pelas consequências de sua mentira […].” Kant, Sobre um suposto direito de mentir à humanidade, 1797.

11 – “[…] A força de um espírito será medida conforme a dose de verdade que ele será capaz de suportar […].” Nietzsche, Além do bem e do mal, 1886.

12 – “É impossível ignorá-la [a verdade].” Descartes, Carta ao Padre Mersenne de 16 de outubro de 1639.

13 – “[…] Acontece com frequência, mesmo que tenhamos razão, de nos deixarmos confundir ou refutar por uma argumentação especiosa ou inversa.” Schopenhauer, A arte de ter sempre razão, 1864 (póstumo).

14 – “[…] Um pensamento sobrevém quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero.” Nietzsche, Além do bem e do mal, 1886.

15 – “A verdade é como uma luz, mas uma luz formidável: é por isso que olhamos tudo ao redor piscando os olhos, achando que podemos nos cegar.” Goethe, Pensamentos, 1815-1832.

16 – “Também a filosofia só chega a verdades abstratas, que não comprometem ninguém e não perturbam.” Deleuze, Proust e os signos, 1964.

Abaixo dois vídeos, duas aulas com o prof. Oscar Brenifer em escolas do Peru, na capital Lima.

oscar brenifer II

oscar brenifer

Dica de livro: Você pensa o que acha que pensa? Faça o teste!

Encontrei outro livro muito bacana para vermos se somos realmente coerentes com aquilo que pensamos. Se as nossas diversas idéias se conciliam umas com as outras ou se nossa cabeça é uma grande bagunça incoerente. Por isso recomendo o livro “Você pensa o que acha que pensa”? Editora Zahar. Os autores são: Julian Baggini (autor de O porco filósofo) e Jeremy Stangroom. O livro ao todo possuí 12 testes para você conhecer melhor o que você pensa. Aqui abaixo digitei um teste apenas. Quem quiser adquirir o livro: http://bit.ly/cg3i1O . Ao clicar na figura abaixo (capa do livro) você tem acesso ao sumário do livro, clpping ou o que saiu nos jornais sobre o livro, um outro trecho e um release da obra.

O Check-up Filosófico

Tenho as minhas próprias opiniões – opiniões

sólidas – mas nem sempre concordo com elas.

George W. Bush

Certa vez, Clint Eastwood deu uma declaração memorável: “Opinião é que nem bunda: cada um tem uma.” Quando se trata das nossas próprias convicções, porém, não queremos que nossos pontos de vista sejam comparados a partes ou funções escatológicas. As opiniões dos outros podem ser bobas, levianas, ingênuas ou maldosas, mas as nossas são sempre bem pensadas, inteligentes e merecedoras de atenção.

Bom, talvez. O propósito do check-up filosófico, entretanto, não é dizer quais das suas opiniões são válidas ou não. O que ele fará é revelar se você conhece bem as suas próprias opiniões. Levando a metáfora de Clint Eastwood mais longe do que deveríamos, vamos testar se suas opiniões se parecem mais com uma bunda durinha ou com uma flácida e cheia de estrias.

Faça o check-up

Para fazer o check-up filosófico, leia as declarações abaixo e marque se você concorda ou não. Nessa etapa, é importante simplesmente ir marcando as respostas enquanto continua, ou anotá-las numa folha avulsa. Não olhe para a tabela de pontos nem para a análise que vem logo a seguir até ter respondido às perguntas.

Sabemos que muitas vezes você não vai concordar ou discordar inteiramente, mas quase sempre tenderá mais para uma das respostas. Se não tiver certeza, escolha a resposta que estiver mais perto de suas opiniões. Se realmente não tiver nenhuma opinião, então está na hora de arranjar uma!

O check-up filosófico não julga se as suas respostas estão corretas ou erradas, por isso, seja o mais sincero possível na hora de responder. Preste muita atenção a cada uma das afirmações, porque nenhuma palavra está ali à toa.

Concordo Discordo
1. Não existem padrões morais objetivos; julgamentos morais são apenas a expressão dos valores de culturas específicas.
2. Contanto que não prejudiquem os outros, os indivíduos deveriam ser livres para perseguir os seus objetivos.
3. As pessoas não deveriam usar o carro se pudessem fazer o mesmo trajeto a pé, de bicicleta ou de trem.
4. É sempre errado tirar a vida de outra pessoa.
5. O direito à vida é tão fundamental que questões financeiras são irrelevantes em qualquer esforço para salvar vidas.
6. A eutanásia por escolha do próprio paciente deve continuar sendo ilegal.
7. O homossexualismo é errado porque é antinatural.
8. É perfeitamente razoável acreditar na existência de algo mesmo que não haja possibilidade de prová-la.
9. A posse de drogas para uso pessoal deveria deixar de ser considerada crime.
10. Existe um Deus bom, todo-poderoso e amoroso.
11. A Segunda Guerra Mundial foi uma guerra justa.
12. Quando se faz uma escolha, sempre se poderia ter feito a escolha oposta.
13. Nem sempre é correto julgar os indivíduos exclusivamente por seus méritos.
14. Apreciações sobre obras de arte são puramente uma questão de gosto.
15. Após a morte física, a pessoa continua existindo numa outra forma.
16. O governo não deveria permitir a venda de remédios que não tivessem sua eficácia e segurança previamente testadas.
17. Não existem verdades objetivas; a “verdade” é sempre relativa a culturas e indivíduos.
18. O ateísmo é uma fé como outra qualquer, porque é impossível provar que Deus não existe.
19. Saneamento básico e sistema de saúde adequados são geralmente bons para a sociedade.
20. Em certas circunstâncias, pode ser aconselhável discriminar positivamente uma pessoa como recompensa por danos causados a ela no passado.
21. A medicina alternativa vale tanto quanto a medicina tradicional.
22. Um sério dano cerebral pode tirar de alguém toda a consciência e senso de individualidade.
23. Deixar que uma criança inocente sofra desnecessariamente, quando se poderia facilmente impedir, é moralmente condenável.
24. O meio ambiente não deve ser desnecessariamente prejudicado em prol dos interesses humanos.
25. Michelangelo é um dos maiores artistas da história.
26. Os indivíduos têm direito exclusivo sobre o próprio corpo.
27. Os genocídios são uma prova da capacidade humana de praticar um grande mal.
28. O Holocausto é uma realidade histórica que acontecendo mais ou menos como registram os livros de história.
29. Os governos deveriam poder aumentar radicalmente os impostos para salvar vidas nos países em desenvolvimento.
30. O futuro está determinado; a forma como a vida de alguém se desenrola é uma questão de destino.

Como contar os pontos

Sob cada entrada de T1 a T15, assinale todas as células que estiverem de acordo com suas respostas (T=Tensão, Q=Questão).

T1 T2 T3 T4 T5
Q1Concordo Q5Concordo Q10Concordo Q17Concordo Q24Concordo
Q27Concordo Q29Discordo Q23Concordo Q28Concordo Q3Discordo
T6 T7 T8 T9 T10
Q2Concordo Q26Concordo Q4Concordo Q12Concordo Q19Concordo
Q9Discordo Q6Concordo Q11Concordo Q30Concordo Q7Concordo
T11 T12 T13 T14 T15
Q20Concordo Q22Concordo Q8Discordo Q14Concordo Q16Concordo
Q13Discordo Q15Concordo Q18Concordo Q25Concordo Q21Discordo

Toda vez que você marcar duas células na mesma coluna T1, de T1 A T15, identificamos uma tensão em seu sistema de convicções. Explicaremos mais tarde o que cada uma significa, mas, como você já está roendo as unhas para saber seu resultado, eis o que achamos que ele implica:

Nenhuma Tensão – Suas opiniões sobre os temas das nossas perguntas são totalmente coerentes.

Uma ou duas tensões – Você parece ser um pensador de admirável coerência, ainda que não inteiramente.

De três a cinco tensões – Como as da maioria das pessoas, suas convicções talvez não sejam tão consistentes quanto poderiam ser.

Seis ou mais tensões – Ou você é um pensador incrivelmente refinado ou é um mar de contradições!

Análise Geral

O check-up filosófico tem como objetivo identificar as tensões ou contradições nas suas convicções. Não pretende apontar quais de suas opiniões são válidas ou não são válidas, mas sim as incompatibilidades no seu conjunto de crenças.

Cada tensão indica que ou (1) há uma contradição entre as duas convicções ou (2) que é preciso um raciocínio sofisticado para que seja possível ter essas duas convicções ao mesmo tempo sem deixar de ser coerente. Isso quer dizer que existem motivos – que em breve explicaremos – que tornam muito difícil, senão impossível, manter ambas as opiniões.

Você pode pensar em “tensão” como uma ação intelectual para chegar ao equilíbrio. Quando houver pouca ou nenhuma tensão entre as convicções, pouco esforço intelectual é necessário para equilibrá-las. Mas, quando houver muita tensão, é preciso ou sair de cima do muro e abandonar uma das convicções, ou manter o equilíbrio, com esforço e destreza intelectuais, ou então dar de cara com o muro ao não conseguir conciliar a tensão, a continuar mantendo convicções contraditórias.

Será que você deveria se preocupar com as tensões que identificamos? Se você se preocupa mesmo em ser consistente, então deve ou (1) desistir de uma delas ou (2) encontrar alguma maneira racional e coerente de conciliá-las. Se você não se preocupa muito com a coerência, talvez devesse fazê-lo.

Repare que esse teste detecta apenas tensões entre pares de convicções selecionadas previamente – e não todas as possíveis tensões entre todas as combinações de convicções. Assim, é bem possível haver outras tensões além daquelas que o teste captou. Um bom resultado não indica coerência perfeita em todas as suas convicções.

Livro: Filosofia explicada à minha filha, escrito por Roger-Pol Droit

Esses dias empolgado com um livro que adquiri recentemente resolvi digitar o primeiro capítulo para tê-lo em formato de texto no computador. É um texto tão curioso que resolvi postá-lo aqui no blog e compartilhá-lo, porque espero que sirva de estímulo para as pessoas, alunos ou não, se interessarem pela filosofia. Boa leitura! É um diálogo entre um pai e uma filha sobre a filosofia. Será que você irá se identificar com as perguntas inteligentes da menina de 16 anos? Acredito, sem dúvida, que sim! Ah, sim, sem esquecer: o livro foi editado pela Martins Fontes. Quem quiser adquirir: http://bit.ly/aaBtXd (este site compara o preço do livro nas principais lojas online e busca o mais em conta).

1. Procurar idéias verdadeiras

– Então, o que é a filosofia?

– Nós vamos procurar. E tomara que encontremos. Mas não espere uma resposta imediata. Não é algo que se explique numa frase.

– Tente!

– Não, não adiantaria nada. Num dicionário, por exemplo, você leria que a palavra “filosofia” pode significar, em grego antigo, “amor à sabedoria”. Você provavelmente vai pensar que deve ser algo muito chato, porque “sabedoria” lembra coisa de gente mais velha, séria. Portanto, você não terá avançado muito, pois ainda será preciso se perguntar o que chamamos de “sabedoria”, no que ela consiste? Terá aprendido o que a palavra “filosofia” quer dizer, mas continuará sem saber o que a filosofia realmente é.

– Se me dizem o sentido da palavra, é lógico que eu sei o que é!

– De jeito nenhum. Quando você aprende que a palavra “Japão” é o nome de um país da Ásia, nem por isso você conhece o Japão. Ou então, imagine uma criança que não sabe o que quer dizer a palavra “matemática”. Você lhe dá uma definição: “uma ciência dos números e das figuras”. Agora, a criança conhece o sentido da palavra. Pode até usá-la. Mas você diria que ela sabe o que é matemática?

– Claro que não.

– Está vendo? A palavra não basta! Conhecer algo não é apenas saber uma palavra, é também, necessariamente, ter uma experiência. Você conhece o que chamam de “matemática” quando começa a fazer contas e demonstrações, fazer aritmética, álgebra ou geometria. E o Japão, você vai conhecer lendo livros, vendo exposições e filmes e, é claro, indo até lá!

– Então, dá para dizer que para conhecer a filosofia é preciso ir até ela?

– Exatamente! Você entendeu muito bem. É preciso ir até a filosofia. No entanto, não é um país, um lugar para onde podemos viajar. É antes, como a matemática, uma atividade.

– Certo, mas então o que a gente faz quando faz filosofia?

– Tentamos saber a verdade. Pronto, este é um bom ponto de partida: a filosofia é uma atividade que procura a verdade. Mas isso não basta. Um delegado também busca a verdade. Numa investigação, quando se trata de um assassinato, ele tenta saber quem é o assassino. Para isso, como você sabe, ele vai examinar como cada suspeito empregou seu tempo, comparar todas as versões, confrontar depoimentos… e refletir! Não vai acreditar na palavra de ninguém e vai colocar em dúvida, sistematicamente, tudo que lhe contarem.

Os filósofos fazem algo parecido. Para procurar a verdade, não hesitam em examinar suas convicções e suas crenças. Podem até considerar suspeitas suas próprias idéias. Mas não são delegados de polícia! Há muita gente diferente que se dedica a procurar coisas verdadeiras. Além dos investigadores, quem você colocaria entre os buscadores de verdades?

– Não sei… Talvez os historiadores. Eles querem descobrir a verdade sobre os acontecimentos passados.

– É, pode ser, é uma possibilidade. E os cientistas? Na sua opinião, devemos incluí-los entre os buscadores de verdades?

– É claro. Mas eles procuram a verdade sobre problemas de química, de física ou de biologia!

– Certo! Você já entendeu a conclusão que devemos tirar dos nossos exemplos: os delegados de polícia, os historiadores, os cientistas (e muitas outras pessoas também) têm em comum o fato de procurarem a verdade, mas em campos muito diferentes. Acho que para avançar nesta nossa investigação, sobre o que fazem os filósofos, temos um problema para resolver. Sabe qual é?

– Acho que vamos ter de descobrir em que campo os filósofos procuram a verdade.

– Ótimo! Bem, na sua opinião, qual é o campo em que os filósofos procuram a verdade? Ocupam-se dos criminosos, como os policiais? Das realidades da física ou da química, como os cientistas?

– Não! Acho que eles se dedicam à justiça, à liberdade, a coisas assim…

– Você está certa, mas temos de ser mais precisos. É verdade que houve filósofos que procuraram a verdade no campo da moral (saber o que é bom e o que é mau, definir o que é justo e o que não é) ou da política (os cidadãos e o poder, a organização das decisões). Mas estes não são os únicos campos. Quando descobrimos a filosofia, ficamos impressionados com a quantidade e a diversidade de temas. Os filósofos se interessam na verdade pela ciência, pela arte, pela lógica, pela psicologia, pela política, pela história… Mas, ainda assim, não são nem cientistas, nem artistas, nem lógicos, nem psicólogos, nem historiadores…

– Não estou entendendo mais nada. Eles se interessam por tudo e não são especialistas em nada?

– Mais um tempinho e acho que tudo isso pode ficar bem mais fácil de entender. Pense nos dados que temos, parece uma adivinha: o que podem fazer pessoas que procuram a verdade num campo (a matemática, a moral ou a arte) sem serem especialistas que trabalham nesse campo?

– O mistério continua… É muito estranho.

– Quem busca a verdade em matemática são, normalmente, os matemáticos. Em história, os historiadores. E assim por diante. Se os filósofos também procuram a verdade em todos esses campos, devem fazê-los de uma maneira especial, como se trabalhassem num campo que atravessa todos os outros. Estamos chegando à solução: é no campo das idéias que os filósofos procuram a verdade. Cada vez que você quer entender como um filósofo se situa num campo, pode começar por acrescentar “idéia de”… O filósofo não trata da justiça como um advogado ou um juiz. Trata da “idéia” de justiça. Não se interessa pelo poder do mesmo jeito que o político, tenta aprofundar a “idéia” de poder.

E as coisas funcionam assim em todos os campos. Em matemática, por exemplo, o filósofo vai tratar da idéia de prova, ou da idéia de demonstração, ou ainda da idéia de número. Em história, vai se interessar pela idéia de acontecimento ou de revolução, ou de violência, ou então pela idéia de paz. Em moral, vai se interessar pela idéia do bem e pela idéia do mal. Ou então pelas idéias de delito, de responsabilidade, de regra.

Agora já é possível você entender como, trabalhando nesse campo das idéias, que atravessa todos os outros campos, os filósofos podem lidar com muitas especialidades sem ser especialistas?

– Na verdade, são especialistas das idéias?

– Certo. Temos de acrescentar que essa busca da verdade no campo das idéias pode quase sempre adotar a forma de uma pergunta: “qual é verdadeiramente a idéia de…?”. No lugar das reticências, você pode pôr “liberdade”, “obra de arte”, “poder”,justiça”, “indivíduo”, “alma”, “homem”, “dignidade”… e dezenas de outras. Portanto, o que os filósofos procuram é a melhor definição possível de cada idéia. E, entre essas definições, procuram qual é a verdadeira.

– Então, para que servem concretamente suas investigações?

– Para viver, simplesmente para viver! As idéias não são um campo à parte, uma espécie de jardim que estaria ao lado da existência. De jeito nenhum! Na verdade, as idéias governam as ações, os jeitos de viver, os comportamentos.

Você não quer que eu acredite que os seres humanos precisam de filosofia para viver. Tem muita gente que vive sem ter a menor idéia do que os filósofos pensam. E isso não as impede de viver!

– Espere aí!… Se você quer dizer que se pode comer, dormir, crescer sem buscar a verdade nas idéias, é claro que tem razão. Não se pode viver sem beber, sem se alimentar, sem dormir, mas se pode perfeitamente manter o organismo vivo sem realmente refletir. A questão não é essa. É saber como viver melhor. De maneira mais humana, mais inteligente, mais intensa. E, para isso, não dá para escapar de um trabalho com as idéias.

Digo: um trabalho com as idéias, porque idéias, todo o mundo tem. Elas já existiam antes da filosofia. Não foi ela que as criou. A filosofia vai testá-las, colocá-las à prova, examiná-las, para ver quais são verdadeiras e quais são falsas.

– Não entendo por que isso é indispensável para viver!

– Então, escute esta história. É uma história bem antiga que um filósofo chamado Sócrates contava muito tempo atrás. Algumas crianças querem escolher o que vão comer. Se forem à padaria ou à confeitaria, a idéia que terão é de que o que é bom para elas são os bolos e os bombons. Contudo, esses doces na verdade podem estragar seus dentes, fazê-las engordar e até, um dia, torná-las obesas. Essas crianças poderiam adoecer por causa da idéia falsa que têm do “bom”: confundem o que é bom de gosto, agradável de comer, com o que é bom para a saúde.

Ao contrário, se forem ao médico, eles lhes dirá a verdade: “O que é bom para vocês, para a sua saúde, para o seu equilíbrio, é uma alimentação variada, leite, frutas, peixe, legumes e… muito pouco (ou nenhum) bolo e muito pouco (ou nenhum) bombom.” O que essas crianças vão pensar do médico?

– Vão pensar que ele está enganado, e que elas sabem melhor que ele o que é bom para elas…

– É, dirão até que esse homem é mau, que quer o mal delas, que tenta impedi-las de ser felizes. Ou que ele não entende nada do que é bom para elas. Ou, ainda, que ele está enganado e não sabe nada sobre a verdade.

Então, de duas, uma: ou as crianças continuam na ilusão, evidentemente agradável, de que o melhor para elas é viver de bombons e bolos, e essa idéia pode lhes causar uma indigestão, ou então descobrem que o médico diz a verdade, mesmo que essa verdade lhes desagrade, e essa mudança de idéia vai ajudá-las a ter uma saúde boa.

É isso… as idéias são coisas que podem fazer você ficar doente ou saudável! Entende agora por que elas são tão importantes para viver?

Tenho certeza de que você inventou uma história sob medida… para se ajustar ao seu argumento.

– Não inventei nada. A história das crianças que preferem o padeiro ao médico, repito, era Sócrates, um dos primeiros filósofos, que a contava em Atenas, faz… 2500 anos! Você acha que esse exemplo é apenas um caso particular e ainda não está convencida de que as idéias são sempre importantes para a vida. Então vejamos a situação de outro ângulo. Será que a idéia que temos de justiça tem alguma importância para a maneira como vivemos?

Claro que tem!

– E as idéias que temos da liberdade, ou da morte, ou da igualdade, ou da felicidade, por exemplo, elas desempenham algum papel na existência?

Certo, entendi. Existem idéias que governam nossa vida…

– Portanto, é muito importante para a nossa vida saber quais as idéias verdadeiras e quais as falsas. Imagine alguém que tem uma idéia falsa da felicidade ou da liberdade. Ele quer ser feliz e livre, mas vai se enganar de caminho, se perder e sem dúvida fazer muito esforço… para nada! Acreditará que sua idéia é a certa, mas se ela for falsa é muito provável que ele fracasse e que sua vida não dê certo.

Mas, se é uma idéia falsa, por que ele acha que é verdadeira?

– Boa pergunta! A resposta é muito simples: acreditamos que uma idéia falsa é verdadeira enquanto não a examinamos, olhamos de perto. E isso está sempre acontecendo. É até a situação mais comum e mais banal. Acho que uma coisa é verdadeira porque sempre ouvi dizer, desde pequeno todos repetiam a mesma coisa. Quase todas as idéias que temos na cabeça vieram de fora. Entraram na nossa mente sem sabermos realmente como. Vêm da nossa família, do nosso meio, dos nossos amigos. Em geral, não fomos nós que fabricamos nossas idéias! Assim como também não inventamos as palavras com as quais falamos.

Quase sempre, essas idéias se instalaram em nós, tornaram-se “nossas” idéias, sem que as tenhamos de fato escolhido. Raramente dissemos “sim” ou “não”. Não procuramos realmente saber se são verdadeiras ou falsas.

Quer dizer que a gente poderia ter na cabeça um monte de idéias falsas sem saber?

– Claro! Pior ainda: um monte de coisas falsas que estamos convictos de julgar verdadeiras com razão!

Qual é a solução? Como é que a gente se cura?

– Bem… não nos curamos, mas fazemos filosofia! Provavelmente é a única maneira de obter o resultado de que estamos falando: testar nossas idéias, colocá-las à prova para selecioná-las.

Aliás, você deve ter percebido que obtivemos um novo resultado: a filosofia é também uma atividade crítica. Não se contenta em procurar a verdade no campo das idéias. Para atingir esse objetivo, também se dedica a expulsar as idéias falsas. Procura detectá-las para que não causem prejuízos.

Podemos dizer isso de outra forma: idéias todo o mundo tem. Cada um tem suas opiniões, suas crenças, suas convicções. Elas podem dizer respeito à política, à religião, à moral, à justiça, à arte… Esse conjunto de opiniões e crenças que cada um de nós possui não é de fato filosofia. A filosofia começa, como atividade de reflexão, quando nos perguntamos: “De todos esses pensamentos que tenho na cabeça, quais são verdadeiros? Quero saber, vou tentar examiná-los!” Fazer filosofia não é simplesmente pensar, ter idéias. É começar a observar suas próprias idéias, como se nós as olhássemos de fora, como se quiséssemos fazer uma arrumação na cabeça.

Portanto, é uma atividade específica. Repito, ela não consiste apenas no fato de pensar. Pode-se pensar de muitos jeitos diferentes. Pensar no que faremos amanhã, ou no que fizemos ontem. Pensar nos amigos ou nas férias, pensar nos estudos, no trabalho… Todos esses pensamentos não são filosofia!

Ou seja, a filosofia são pensamentos especiais…

– Isso mesmo! Acrescento que eles não são especiais por causa do seu conteúdo, mas por causa do seu estilo.

Como assim?

– Na verdade, o que torna esses pensamentos “especiais” não são os temas dos quais eles tratam (por exemplo, a liberdade, a justiça, a morte, Deus etc.). Sobre todos esses temas posso ter pensamentos que não serão necessariamente filosóficos. O que chamo de estilo dos pensamentos filosóficos, seu “jeito de ser” se você preferir, é se examinar, se interrogar para saber se eles são verdadeiros ou falsos, ou até, mais simplesmente, para saber sobre o que exatamente eles falam. É isso o que os torna especiais.

Pode me dar um exemplo?

– Posso. Você sabe o que é um número?

Claro que sei. Sei que existem números inteiros, números decimais…

– É, mas um número é o quê?

Ora… um número!

– Parabéns! Progredimos bastante… Diga-me então o que é isso, já que você sabe tão bem.

É um algarismo.

– Ah, não! Os algarismos (0 a 9) servem para escrever os números, mas são realidades diferentes: você tem dez algarismos e uma infinidade de números… e você pode escrever um mesmo número, o três, por exemplo, em algarismos arábicos (3) ou romanos (III). Portanto, número e algarismo não são a mesma coisa. Então, recomeçando: o que é um número?

É uma ferramenta para contar.

– Como um ábaco? Como uma calculadora? Como os dedos?

É simples! Um número é uma coisa que dá para ver na realidade. Ali tem dois sapatos, aqui três velas… Olhando para eles, entendo o que é. E digo “dois”, “três” etc.

– E como você pode contar sem ter o número? Pense… Não é porque você vê essas três velas que você tem a idéia do número três. É porque você já tem na cabeça esse número que pode saber que ali tem três velas e não quatro ou cinco.

A verdade é que essa história é irritante… É verdade que não sei explicar o que é um número! Aliás, por que você me fez essa pergunta?

– Para fazer você ver o estilo especial das perguntas filosóficas. À primeira vista, achamos que o número é somente do campo da matemática e, achamos, principalmente, como você fez, que sabemos muito bem o que ele é. Depois, quando tentamos dizer o que é, nos atrapalhamos, percebemos que não sabemos. Descobrimos que o que estava claro é vago e confuso; que o que sabíamos já não sabemos mais. E é irritante!

O jeito que os filósofos têm de indagar muitas vezes provoca esse tipo de irritação. Sócrates foi o primeiro a ficar famoso pelo seu costume de surpreender as pessoas desse jeito. Passeando pelas ruas de Atenas, a cidade grega aos pés do Partenon, começava a discutir com as pessoas e mostrava-lhes que elas, na verdade, não sabem o que acham que sabem.

Por exemplo, Sócrates interroga um velho militar, um general que lutou várias vezes e que conhece a guerra. Esse soldado acredita saber o que é a coragem e explica: a coragem, diz ele, é não ter medo. Sócrates lhe pergunta simplesmente se aquele que tem um medo terrível mas que assim mesmo luta, superando o pânico, não é mais corajoso do que aquele que não sente medo nenhum. O general concorda. Portanto, sua idéia da coragem não era correta. Como você pode imaginar, o militar fica furioso quando fazem com que ele veja que está enganado justamente sobre aquilo que acredita conhecer melhor.

Exemplos desse tipo há tantos quantos você quiser nos diálogos de Platão, que por muito tempo escutou Sócrates e encenou, digamos assim, sua maneira de fazer perguntas irritantes. Sócrates pede a um professor um tanto pretensioso, que afirma saber uma quantidade enorme de coisas e ser capaz de responder a qualquer tipo de pergunta, que diga o que é a beleza. Este tem um ataque de riso: é uma pergunta fácil demais! Qualquer criança responderia, ele sabe tudo isso de cor, Sócrates zomba do mundo com suas perguntas de uma facilidade ridícula… A resposta é simples: um vaso de ouro, diz ele, é isso a beleza.

Então Sócrates tem de lhe explicar que é evidente que ele não entendeu nada de sua pergunta. Não pediu que lhe dê um exemplo de coisa bela, mas que lhe diga o que é “ser belo”, no que isso consiste, como isso se define. Por longos instantes o outro nem mesmo consegue entender de que se trata, ou de que maneira se enganou. Continua no caminho errado, dizendo que beleza é também um cavalo de corrida ou uma jovem moça. Sócrates indaga-lhe sobre a beleza, ou seja, sobre o que permite julgar que todos esses exemplos (um vaso, um cavalo, uma jovem) têm em comum o fato de serem chamados “belos”. Em outras palavras, o que interessa a Sócrates é…

– A idéia de beleza?

– Isso mesmo! E, quando por fim entende que é disso que a pergunta trata, o pretensioso Senhor Sabe-Tudo fica bem embaraçado. Percebe que é incapaz de definir a beleza. Achava que sabia o que é, como todo o mundo, e descobre que na verdade não sabe nada. Como você, há pouco, com o número…

– E existem muitas coisas assim que a gente acha que sabe e na verdade não sabe?

– Toneladas de coisas! Um famoso filósofo chamado santo Agostinho dizia: “Quando não me perguntam o que é o tempo, eu dei. Quando me perguntam, não sei mais.” Pense nesse exemplo. Existem muitas idéias que cabem nesse caso. Como o tempo, acreditamos saber de que se trata enquanto não temos de explicá-lo de maneira clara e precisa. Assim que temos de falar a respeito com exatidão, ficamos em situação embaraçosa. A filosofia é a atividade que consiste em tentar sair desse embaraço.

– E dá para conseguir isso?

– Em geral, dá. Por sorte nem todas as perguntas ficam sem resposta! Em filosofia também existem problemas que encontram solução. Nem sempre, evidentemente, pois acontece de toparmos com novas perguntas que só fazem aumentar o embaraço. Mas isso não é grave. Ao contrário, é até bom…

– Se é embaraçoso, não é uma coisa boa!

– Na verdade é. Só que temos de nos entender primeiro sobre o sentido do termo “embaraçoso”. Na vida de todos os dias, preferimos o que não é embaraçoso. Afastamos as coisas que ocupam muito espaço (as embalagens, malas grandes), que estorvam fisicamente e que impedem os movimentos. Mesma coisa no que se refere à mente: normalmente, procuramos expulsar as preocupações que poderiam se tornar paralisantes, que poderiam criar um incômodo na nossa cabeça ocupando espaço demais.

Esse não é o sentido que convém se quisermos compreender por que os filósofos no final das contas gostam das perguntas que provocam embaraço. O embaraço, nesse caso, é o que espanta e faz avançar. Se eu lhe perguntar o que é um número, primeiro você fica embaraçada, no sentido de que descobre que não sabe o que dizer embora parecesse tão evidente. O homem para quem Sócrates pede para definir coragem ou a beleza experimenta a mesma sensação. É também a perturbação que Agostinho sente quando lhe perguntam o que é o tempo.

Acho que a filosofia nasce dessa forma de perturbação, dessa espécie particular de mal-estar. É seu ponto de partida. Na verdade, é como o espanto. Pensamos: “Como! Não sei claramente o que é um número? (Ou a coragem, ou a beleza). Vou ter de pesquisar!”.

A filosofia começa sempre com essa descoberta de nossa ignorância. Não conseguimos responder, embora pensássemos ter a resposta e ser capazes de dá-la sem dificuldade.

– É meio desestabilizante essa sensação de não saber mais…

– É, não é confortável. É bem mais tranqüilizador ter respostas prontas, já feitas. Essa descoberta da nossa ignorância provoca a cada vez um choque. Primeiro, desestabiliza, é verdade. Como uma puxada de tapete, nos desequilibramos, ficarmos sem ponto de apoio. Desse ponto de vista, a filosofia é sempre “inquieta” – no primeiro sentido desse termos, isto é, não tranqüila, sem repouso. Ficamos sempre mais calmos com certezas. Você tem razão quando diz que há nisso algo de desagradável. Aliás, é por isso que não se gosta muito dos filósofos em certos casos: eles nos impedem de ficar adormecidos, eles nos acordam. E, por causa deles, é preciso pôr-se a caminho.

– Para ir onde?

– Adivinhe!

– Procurar a verdade?

– É claro! E é uma viagem que pode ser longa, difícil, cansativa e sem garantia que terminará bem. Ainda assim, desde que a filosofia apareceu na história da humanidade, sempre existiu gente disposta a sacrificar tudo para se lançar nessa aventura.

– Por que eles fazem isso? Por que todos eles buscam a verdade?

– Pelo motivo bobo de descobri-la! Alguma coisa nos seres humanos os faz desejar a verdade. Não nos ocupemos em procurar saber de onde isso vem nem como funciona. Essas questões nos levariam longe demais. Mas temos de marcar a importância dessa “alguma coisa” que faz procurar a verdade. Também é chamada de desejo de saber. É a mesma coisa: ninguém deseja conhecer algo falso. Quando queremos saber, queremos saber a verdade.

– Mas não são só os filósofos! Também a gente, os jovens, os pais…

– Certo. E quem mais?

Os cientistas, por exemplo, como dissemos no começo.

– Tem toda a razão, mas, na verdade, é parecido. Entre os filósofos e cientistas não há muita diferença.

Como assim? Não são a mesma coisa!

– De fato, hoje se tornaram muito diferentes. E o trabalho dos biólogos, dos químicos ou dos geólogos parece, com razão, muito distante do dos filósofos. Mas essa separação é relativamente recente. Durante séculos, os filósofos faziam ciência, matemática, física, ao mesmo tempo em que refletiam sobre questões de moral ou de política.

Há um único desejo de saber, de saber tudo, em todo caso de saber tudo o que é possível compreender e conhecer. E em todos os campos. É por isso que os filósofos da Antiguidade, da Idade Média e ainda os da época clássica procuravam saber a verdade a respeito do mecanismo das marés como a respeito do melhor governo. Isso não os impedia de se indagarem ao mesmo tempo sobre o que é o bem, a justiça, a felicidade, ou a amizade. Podiam ocupar-se de entender ao mesmo tempo como está constituída a alma humana e como se dá a digestão nos peixes…

O sonho da filosofia era, com efeito, conseguir conhecer tudo, poder abraçar a totalidade dos saberes. Por trás desse sonho havia a idéia de que a verdade não está recortada numa multidão de setores independentes uns dos outros: aqui a biologia, ali a política, em outro lugar a moral.

Mas como todas essas pesquisas podiam se combinar?

– Para nós, hoje, não é fácil de entender. Custa-nos imaginar como era a situação antes da separação dos saberes em vários campos muito distintos. No entanto, essa concepção de uma unidade do conhecimento durou muito tempo e era muito forte. Marcou profundamente a história e o próprio projeto da filosofia. Por isso não é inútil insistir mais uns dois minutos, se você não se importar, sobre…

Certo, mas seja breve, já estou ficando cansada.

– Uma única palavra: “sophós”. É grega e quer dizer duas coisas ao mesmo tempo: “erudito” e “sábio”. Para os gregos da Antiguidade, os dois sentidos não se distinguiam: ser erudito também é saber viver bem a vida. Ser sábio é necessariamente ter adquirido conhecimentos.

Há um personagem que é impossível nessa visão das coisas: o “cientista maluco”, aquele que possui uma considerável ciência mas que tem a ambição de possuir o poder supremo.

“Hahaha!… vou apertar esse botão e serei senhor do mundo… hahaha!”

– Isso mesmo. Esse personagem é impensável para um grego da Antiguidade. Se esse homem é um erudito, será bastante sábio para não sonhar em se tornar senhor do mundo. E, se quer dominar o mundo, é porque não é um verdadeiro cientista. Os gregos pensavam profundamente que o conhecimento do que é verdadeiro contém o conhecimento do que é bom. Saber não era apenas se instruir, era também se transformar, se tornar melhor.

O que isso tem a ver com a gente?

– Pelo menos isto: o adjetivo “sophós”, “sábio-erudito”, você encontra em “philosóphos”, filósofo. “Philó”, ainda em grego antigo, é amar de amizade, ser amigo de, desejar. O filósofo é aquele que deseja se tornar “sophós”, é o amigo de “sophía”, ou seja, o conhecimento-sabedoria. Veremos como esse duplo significado, dois em um (saber e sabedoria são expressos por uma única palavra, “Sophia”), vai se dividir e se separar no curso da história. Alguns considerarão a filosofia um amor à sabedoria, outros, a busca do saber. Mas, por enquanto, vamos parar por aqui. Já avançamos bastante para um começo. Bom descanso!